terça-feira, 12 de maio de 2009

É proibido proibir

J.R. Guzzo na VEJA dessa semana

"Quando sai em defesa da farra aérea, como acaba de fazer, o presidente mostra que entende muito bem como funciona o Brasil. O que não quer é mudá-lo"


Se o presidente Luiz Inácio Lula da Silva fosse médico, em vez de político, faria grande sucesso como anestesista. Por que não? De todas as coisas que sabe fazer, na carreira de homem público pela qual optou, poucas se comparam à sua capacidade de adormecer qualquer problema que lhe apareça pela frente – sobretudo quando o problema é a denúncia de alguma safadeza no mundo que gira ao seu redor. O presidente, nesses casos, não varia nunca. Desde a primeira trovoada para valer de seu governo, em fevereiro de 2004, quando foi divulgado que o companheiro Waldomiro Diniz, funcionário graduado do Palácio do Planalto, havia sido flagrado pedindo dinheiro a um empresário da indústria de jogos de azar, sempre diz que não aconteceu nada de mais. A atitude de negar o erro, em vez de tentar curá-lo, funciona como um sedativo que vai direto na veia; não há problema que permaneça de pé se o presidente da República, em pessoa, se comporta dessa maneira. O tipo de anestésico aplicado por Lula vai mudando em cada história; ou "não há provas", ou "todo mundo faz isso", ou "sempre foi assim", ou a denúncia é feita porque seu governo "é a favor dos pobres" etc. O que não muda é o propósito real dessa conversa: dizer que não aconteceu nada de errado, ou, se por acaso aconteceu, a culpa não é de ninguém, e principalmente não é dele.


Nenhuma vigarice da vida pública, por mais grosseira que seja, parece escapar desse tratamento-padrão – nem mesmo a distribuição de passagens aéreas, pagas com dinheiro público, para familiares e amigos de senadores e deputados circularem de graça pelo Brasil e pelo mundo. A demência disso tudo ficou tão clara que os próprios deputados se assustaram com o que estavam fazendo e, embora a contragosto, resolveram suspender a trapaça. Mas o presidente Lula, que a rigor não tinha nada a ver com a história, e sem que sua opinião tivesse sido formalmente solicitada, resolveu sair em defesa dos parlamentares. Segundo ele, as críticas foram uma "hipocrisia". A possibilidade de que alguém, honestamente, tenha achado que não se pode gastar com a família passagens que só são pagas pelo Erário porque devem servir para viagens de trabalho nem sequer lhe passou pela cabeça; quem pensa assim é "hipócrita", e estamos conversados.


A partir daí, o discurso que começou torto foi entortando cada vez mais. Lula disse que a situação sempre foi essa, "desde a descoberta do Brasil" – argumento que não é apenas viciado, pois erros velhos não se transformam em acertos com o passar do tempo, como perfeitamente falso, já que a lambança das passagens só tomou impulso para valer com a degeneração iniciada depois que se inventou, em Brasília, o sistema geral das "mordomias". O presidente admitiu, é verdade, que usar as passagens para ir à França é "delicadíssimo", mas e daí? Ninguém está interessado em saber se é delicado ou não, mas se está certo ou errado. Para encerrar, disse que não vê "o tamanho do crime" se "o cara levar a mulher para Brasília". Não haveria crime nenhum, é claro, se o "cara" pagasse a passagem do próprio bolso – mas Lula está convencido de que esse tipo de detalhe é pura bobagem. É bobagem para ele, mas não para muita gente simples que parou para pensar um pouco no assunto. Se o presidente lesse de vez em quando o que sai na imprensa, talvez ficasse sabendo da melhor definição já feita até agora sobre essa história toda; seu autor é um carteiro. Em conversa com um deputado, explicou que tem direito de não pagar suas passagens de ônibus quando está entregando cartas – mas sua mulher paga todas as viagens que faz. Disse tudo.


O presidente da República talvez possa contabilizar, entre as obras de seu governo, a criação do neoliberalismo moral – sistema de pensamento pelo qual a presença da lei, e sobretudo dos bons costumes, deve ser a mínima possível em qualquer atividade dos políticos brasileiros. Seria uma nova versão do "é proibido proibir". Fica proibido, no caso, proibir tudo o que é bom para os políticos e ruim para o Brasil – das passagens para a "mulher do cara" até nomeações de parentes para cargos no governo, distribuição de dinheiro público para o seu laranjal de ONGs, negócios com suas empresas-fantasma, e por aí afora. Lula não faz isso por distração, mas por conhecer há muito tempo a qualidade dos políticos que o sistema eleitoral brasileiro produz, e com os quais tem de governar. Quando sai em defesa da farra aérea, como acaba de fazer, o presidente mostra que entende muito bem como funciona o Brasil. O que não quer é mudá-lo.

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