sexta-feira, 5 de março de 2010

Pelofobia

Por Ivan Martins, da revista época
"As mulheres não se permitem mais pelos em lugar nenhum do corpo. Por quê?

Em primeiro lugar, me desculpem pela ausência da semana passada.
Eu fui viajar no Carnaval, voltei na tarde de quarta-feira (17) e não consegui escrever a coluna em tempo. Quem esperava ler e não leu tem direito de ficar chateado.
A parte boa da ausência é que durante a semana sem escrever eu me dei conta de um assunto óbvio, importante, que está ao nosso redor o tempo todo e que me deixa meio indignado – e sobre o qual nunca tinha me ocorrido escrever.
Estou falando de pelos. De depilação. Da forma meio amalucada como as mulheres brasileiras parecem se relacionar com esse aspecto da anatomia delas.
Conto uma história: dias atrás, escolhíamos aqui na revista uma foto para ilustrar a reportagem sobre as mulheres que se deixam fotografar nuas por alguma causa nobre ou pelo simples prazer de exibir seus corpos diante das lentes.
Uma das possibilidades era ilustrar a reportagem com a imagem de uma mulher jovem, meio gordinha, de rosto bonito e seios grandes, fotografada pelo americano Matt Blum para o
Nude Project – uma coletânea mundial de nus de mulheres anônimas, normais, sem maquiagem ou correção digital. Vejam o site e vocês irão entender. É bonito.
Bem, a moça estava fotografada da cintura para a cima, com uma das mãos atrás da cabeça, e embaixo do seu braço esquerdo se via... um delicado tufinho de pelos.
Vocês não imaginam a confusão que aquilo causou. Exceto por mim e pelo editor de fotografia – o André Sarmento – todos ao redor achavam a foto impublicável. Abominável, na verdade.
As mulheres, minhas colegas de trabalho, não se continham: “Vai publicar isso, que nojo”; “Olha esses pelos, parece sujeira, não pode colocar uma foto dessas na revista”; “Vocês estão loucos de dar uma coisa dessas. Que mau gosto”... E por aí foi.
Final da história: André e eu fomos voto vencido e a foto não saiu.
Como uma espécie de vingança – e parte do argumento – ofereço a imagem para que vocês mesmo julguem: (tirei aqui, meninas, mas confiram no site
http://www.thenuproject.com/)
Não sei qual é a opinião de vocês, mas eu tenho a minha: pelos, no Brasil, viraram motivo de histeria.
Na minha geração, que se tornou adolescente nos anos 70, as pessoas já gostavam de pernas lisas e de axilas desfrutáveis – mas hoje em dia vigora uma verdadeira pelofobia.
As mulheres não se permitem mais ter pelos em lugar nenhum, em quantidade alguma. Das sobrancelhas ao períneo, tudo tem que estar liso como vidro, deserto como a superfície da Lua – sem as crateras, de preferência.
Quanto tempo se passou desde que a Vera Fischer posou nua exibindo uma versão louro-acastanhada da floresta amazônica? Quantos anos transcorreram desde que pelinhos para fora do biquíni deixaram de ser a coisa mais sensual que se podia ver em Ipanema? Foi ontem que eu vi Julia Roberts aparecer numa cerimônia publica com pelos nas axilas?
Julia Roberts, aliás, me lembra o mundo externo ao Brasil, onde as coisas não são como aqui. As mulheres europeias – bonitas, sensuais, interessantes – não seguem o código da pele estéril. Antes de sair a passear, numa noite de verão, elas depilam as axilas para se exibirem num vestido sem mangas. Mas essas mesmas mulheres, em outras circunstâncias, não hesitam em levar um homem para casa por causa de alguns pelos no corpo. Sobretudo aqueles pelos que os homens gostam (ou gostavam...) de descobrir.
Claro, me dizem, é cultural. As mulheres no Brasil gostam de andar sem pelos. Mas seria assim tão simples? Eu não acho.
Acredito que essas estéticas “perfeccionistas” (meu termo favorito é onanistas) têm sido impostas às mulheres brasileiras – e de uma forma muito pouco sutil.
Por causa das revistas de mulheres peladas, por causa de fotos das artistas de TV e do cinema – todas profissionais do corpo, não esqueçam – as mulheres normais foram sendo pressionadas, nos últimos 10 ou 20 anos, a cuidarem do próprio corpo como trabalhassem em boate.
Acho, inclusive, que essa última onda depilatória radical – que as próprias mulheres afirmam ser dolorosa, degradante, cara e terrivelmente trabalhosa – decorre recentemente da popularização dos filmes pornôs.
Em que outras circunstâncias se encontram mulheres totalmente preparadas para a micro-exploração minuciosa e impiedosa das câmeras?
Essa não é uma estética normal e nem muito menos lógica, mas assim é tratada quando se tenta discutir os assunto com as próprias mulheres e com os homens mais jovens, educados esteticamente pelos filmes da Sasha Gray.
Mas quem diz que um púbis sem pelos é mais bonito que um púbis com pelos? Quem diz que um tufo de pelos em baixo do braço é “nojento”? De onde veio essa ojeriza?
Para mim, isso tudo parece uma deformação, um exagero, uma burca ao inverso que as garotas assumem (ou vestem) como se fosse a coisa mais natural do mundo.
A lavagem cerebral está completa quando a exigência deixa de ser imposta de fora (pelos homens, pela moda ou por quem quer que seja) e passa a ser uma demanda interior das próprias mulheres, que já não se imaginam ou se toleram de outra forma que não seja ultradepiladas. Então passam a policiar as outras, transmitindo “a doença” de uma forma epidêmica.
Se algumas delas está fora do padrão vai ser olhada de lado não apenas pelos homens (supostos beneficiários finais da coqueteria feminina), mas sobretudo pelas próprias mulheres, as fiscais mais exigentes do corpo e do comportamento umas das outras.
O resultado disso é uma onda crescente de insegurança íntima: será que eu estou depilada o suficiente, ou pintada o suficiente, ou magra o suficiente, ou bronzeada o suficiente, ou durinha o suficiente para provocar o desejo dos homens e a aprovação das outras mulheres?
Parece um pesadelo, e é.
Ao falar sobre isso, uma amiga me disse que abomina essa coisa dolorosa da “depilação íntima” e que adora a estética triangular dos pelos pubianos, mas que a cada dia se sente mais sozinha na sua delicada convicção. Está virando um dinossauro – ou seria um mamute, peludo e extinto? – num mundo de coquetes histéricas.
E não se trata só de pelos. Uma das minhas colegas de trabalho que faz parte da geração mais atingida por essa onda de perfeição (a das mulheres que ainda não fizeram 30 anos) me contou que uma ex-chefe a achava relapsa por não fazer as unhas toda semana... Por comparação, acho que vale a pena olhar para o que acontece no mundo masculino. Há uns tantos homens que estão raspando o peito, fazendo a sobrancelha e depilando a barba – além de se submeterem a sessões cada vez mais longas de musculação, em busca do corpo perfeito. Muitos chegam a fazer plásticas.
Mas essa não é a lógica dominante.
Os homens, na sua absoluta maioria, continuam peludos, barrigudos, carecas, barbados e fora de forma.
Somos feios, somos baixinhos, somos magrelos, somos gordos. E assim somos aceitos. E assim somos amados. E assim vivemos: sem nos submetermos à tirania do gosto alheio, sem termos feito uma única sessão de depilação.
Há algo a ser aprendido com essa diferença, não?"
Leia mais do Ivan Martins aqui.

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